quarta-feira, 15 de julho de 2009

farol

Uma luz vermelha, suspensa no palco escuro, acende e apaga em intermitência controlada. O som é de alto mar, por vezes com o falar das baleias bem longe. A escuridão marítima dura cerca de um minuto quando um triângulo entra na massa de som. A luz nova é pouca e imita a da lua. Com ela porém já se pode ver o homem que toca triângulo compenetrado. Ele veste farrapos imundos e está descalço. O rosto tem maquiagem escorrida de palhaço. Com a luz que o inaugura no palco passa a caminhar lentamente. Toca um pouco e estende a mão para o nada pedindo esmola. Anda mais um pouco, toca, estende a mão para o nada. O som ainda é de mar e uma baleia parece ter chegado mais perto. O resultado é desastroso. Não ganha uma moeda naquele farol marítimo em que posa como a única matéria humana presente. Chateado, caminha para um lugar muito escuro do palco e retorna com um monociclo. Senta e começa a operar a engenhoca. Uma vez equilibrado, volta a tocar triângulo enquanto pedala. O som do mar se agita um pouco, uma outra baleia parece ter se aproximado. Cessa o triângulo e desce do monociclo estendendo a mão para o nada. De todas as partes escuras do palco agora voam moedas como se viessem do mar. As águas se acalmam lentamente, as baleais se afastam um pouco. A luz vermelha nunca parou de piscar. Um navio passa perto e o homem acompanha com os olhos, arriscando um aceno triste. Quando o navio vira lembrança o homem se senta como que encostado no farol. A luz da lua se paga e a luz vermelha segue piscando na escuridão. O mar segue calmo e um som de gravador é acionado misturando-se com o mar. Logo se ouve um techo do que parece ser uma entrevista realizada na rua:

- O senhor trabalha aqui no farol desde quando?
- Já faz 3 anos já.
- E de onde veio essa idéia de tocar triângulo em cima de monociclo?
- É que ninguém paga pra ouvir triângulo, daí tive que aprender a andar na coisa.
- Mas depois que você aprendeu o monociclo porque continuou tocando triângulo em cima dele?
- É uma provocação, assim, que eu fiz. Ficava com raiva de ninguém pagar pelo triângulo. Daí, hoje, eu meio que engano eles. Agora eles pagam pelo triângulo achando que pagam pelo monociclo.
- Mas não é o monociclo que faz eles pagarem?
- Idaí, mas é o triâgulo que faz eu subir no monociclo. Eu inventei uma maneira minha de ver. Eu digo assim: que o monociclo é o meu trabalho, mas que eu gosto mesmo é de tocar triângulo. Nessa idéia minha que eu inventei, eu sou a única pessoa feliz no mundo.

A gravação acaba. A luz vermelha pára de piscar e agora está acesa na escuridão. Fica cada vez mais forte, bem lentamente, e ao fundo ainda se ouvem as baleias. Quando chega ao seu máximo, a luz vermelha se apaga e em seu lugar uma verde aparece. No mesmo instante, aparecem sons de carros misturando-se ao som do mar, das baleias e de navios esporádicos. Ouve-se ao fundo um motorista xingando um motoqueiro de veado. A luz verde se apaga e é substituída por uma última, amarela. Nessa luz, o palco está mudo pela primeira vez. Só há a luz amarela na escuridão e o silêncio. Não dura mais que um minuto. Se apaga. Uma última baleia reclama, quase inaudível.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

A cena escurece e atrás, em uma tela se projetam os seguintes dizeres:

"Eis a história de Fabinho: o menino que virou um dinossauro."


A luz se intensifica progressivamente até que podem ser vistos dois meninos brincando no chão. Cada qual segura um dinossauro de brinquedo. Fabinho tem um Megaraptor e seu amiguinho um Protocerátopo.

Como toda criança ambos fingem que os dinossauros estão brigando:

- GRRRRrrrr.
- RUrrruuuu....
- ARrrrrrrr....

De repente param de brincar. Fabinho olha pro amigo bastante sério e em silêncio. Sem motivo algum, larga o dinossauro e avança no amigo como um bicho. O pobre resiste um pouco de barriga pra cima, mas Fabinho acaba o matando. De costas para a platéia Fabinho se debruça sobre o corpo e é possível ver que ele se alimenta do defunto. A refeição dura cerca de um minuto. Depois de saciado olha para o público e seu comportamento se assemelha ao do dinossauro.

Ouve-se ao longe:

- Fabinho, tá na mesa!

Volta a olhar para o defunto do amigo e então para o público, dando a entender que já está farto. Fareja o ar pesadamente e se retira arfante e desconfiado. A luz vai se fechando sobre o corpo, pára nele por alguns segundos e se apaga.



Na tela se projetam os seguintes dizeres:


"Eis a história de Róger: o homem que foi morto por um dinossauro no caminho de casa"

A luz se acende na cena vazia. Um homem aparece e caminha até o centro do palco quando hesita assustado e recua um passo. Da cochia oposta vem correndo o dinossauro que antes fora Fabinho. Ataca ferozmente o sujeito lançando-o ao chão. Mata-o, se alimenta por poucos segundos e olha para o público.

(blackout)

terça-feira, 14 de abril de 2009

passeio ao zoológico

(O menino entra em cena e enlaça o braço de um homem mais velho que está sentado. O homem aproveita a ajuda pra levantar. Caminham lentamente pelo palco vazio como se tudo ali em mínimos detalhes formatasse um zoológico.)

- Com todo respeito senhor, mas tem uma coisa que está me incomodando muito e eu preciso dizer.

- Precisa mesmo dizer? - pergunta preguiçosamente.

- É que não entendo essa sua idéia de querer vir ao zoológico.

- (se irrita) Se era esse o incômodo devia ter enfiado o punho na boca ao invés de falar.

- Senhor, não se irrite por favor. É que eu fico curioso, é que o senhor é...bom...

- ...diz menino! Às vezes soa muito bem, você vai ver!

- É que o senhor é cego.

- A vantagem de ser cego é não ser obrigado a ver determinadas coisas como, por exemplo, essa sua cara despelada e morna.

(O menino se sente humilhado, mas a curiosidade segue o impulsionando)

- Não precisa ser assim tão duro, só queria entender por que...

- Shhhhhhh! Escuta. Sabe que som é esse rasgando o ar? Que vem dali? (o dedo aponta sem que a cabeça se mova)

- Não consigo ver que bicho é, o som tá vindo longe.

- Você não consegue ver porque é surdo! Esse som, menino, é o bramar do Urso. E essas orelhas (estica a mão e esfrega as do menino muito irritado) só servem pra ficar penduradas, porque o mundo todo é viciado em enxergar.

- Tá, você tem razão. Mas mesmo assim...

- Cala a boca e me leva pra andar.


(caminham lentamente contornando o palco vazio)


- Eu sei que esse guinchar misturado com grunhido é um javali e não um porco. O javali é como eu: amargo e ríspido. E o porco é como você: dócil ao ponto da estupidez.

(menino acha graça na sinceridade)
- O senhor diz mesmo o que pensa.
- Eu não tenho medo do mundo porque eu vejo mesmo nada. (ensaia um riso sarcástico e amarga com ele)
- E isso aqui o que é?
- Não conhece nem olhando. Vê mais não enxerga. Pra você é que o zoológico é inútil. Isso é um gavião guinchando pra gente. À nossa volta os pássaros reclamam de diferentes maneiras. Os gansos estão grasnando bem pra lá que o som é muito fácil de ouvir. Os patos e os marrecos devem estar por lá também. Alguns pássaros piam livres acima da gente, outros estão presos chireando. Os homens também piam e sibilam. Alguns pássaros gorjeiam outros trinam, depende muito do som. Os corvos crocitam, e só eles crocitam. (usa apenas um braço pra se expressar, forte e preciso)
- Mas você não queria mesmo poder vê-los?
- Escuta o que eu digo e engole essas perguntas de uma só vez. Eu já disse que a vantagem de ser cego é não ser obrigado a ver determinadas coisas. Pra quem vê, o zoológico é repleto de gaiolas. No mundo de quem ouve estamos todos juntos. Os pombos da cidade e os gaviões engaiolados. Daí você deve entender. Eu venho pra cá pra ouvir os homens e os bichos misturados, como se fosse antigamente.

quarta-feira, 25 de março de 2009

o mês gay

Parte 1 - A coisa em si




(sujeitos: Igor e 2)








- Ó negócio é o seguinte. Você não se mexe. Você não me encosta. Eu vou beijar você sem que você se mexa. É que, se eu achar nojento, pode ser que eu fique enjoado.





- Tá bom.





(beija o lábio superior, segue para o inferior, coloca a lingua devagar dentro da boca do outro. A coisa dura cerca de 15 segundos, depois recua.)





- Não é ruim. É meio estranho. Você tem cheiro de homem, não dá pra fugir. E quando eu fechei os olhos parecia que eu tava beijando meu pai. Foi meio escroto.





- Você pagou pela hora, você vai querer me comer?





- Ainda não sei. Se eu te comer, eu quero que você fique em silêncio. Não quero ter a sensação de que você é testemunha do que eu to fazendo. Quero que você fique que nem um morto ou como se tivesse dormindo pesado.





- Olha cara, não dá pra fingir que eu to dormindo com um pau enfiado no rabo. Eu posso tentar ficar quieto, mas vai ser foda.





- Tenta. Pra isso fazer sentido, eu preciso ter consciência de que você é um homem, mas eu não sei se eu vou aguentar ouvir você gemendo com voz grave e tal. Tenho que ir com calma. Vamo tentar, de costas é melhor.





(o sujeito vira de costas, recebe o pau e geme grave pra dentro, tentando engolir a voz.)








Parte 2 - A Notícia





(sujeitos: Igor e 3)





- Um mês gay.





- Quê?





- É isso, vou ser gay por um mês.





- Não dá pra ser gay por uma mês.





- Dá pra tentar.





- Tentar? Tentar ser gay? Quando eu era pequeno eu queria ser judeu, nem por isso eu fiquei tentando.





- Talvez devesse, sei lá, ter casado com uma judia.





- Aí é que tá, eu não acredito nessas coisas. Pra mim ou se é ou se não é. Tentar é esforço inútil, auto-engano...





- É que eu nunca fiquei com homem, não sei se eu gosto.





- Igor, homem não é um um prato indiano que você ainda não comeu. Desde cedo é assim, ou você olha pros peitinhos das meninas ou pros pintinhos dos meninos. Não inventa, pára de me assustar.





- Um mês gay. Só um. Você nunca vai mais me ouvir falar nisso.





- Cara por que isso?





- Por exemplo, eu já tive vontade de beijar você quando a gente tava no colégio ainda, mas é sempre um vulto de idéia, o custume é negar e pronto. Eu quero ver se eu sirvo pra coisa, entende?





- Se serve pra ser bicha?





- É... (ri inquieto)





- Bom cara, já digo desde já, a mim você não come.






Parte 3 - Do cu como sujeito autônomo.


(sujeitos: Igor e 3)



- Tá feito.


- Eu confesso que duvidei no começo, mas daí comecei a ouvir dos outros sobre você.


- Que disseram?


- Que você tinha aboiolado. Primeiro foi a Ju que me contou, mas eu não levei tanto em consideração porque ex-namorada às vezes pode ficar bastante destrutiva, você deve saber. Mas daí veio o Tico, camarada pra cacete, dizer que te viu de bichisse na formatura da irmã dele. Daí eu vi que o negócio era o que era.


- É. (pausa)Foram 30 dias e 8 homens. Paguei pra comer os dois primeiros. Depois vi que era mais em conta conseguir de graça. Pra dizer a verdade, depois da primeira semana ficou mais fácil com os homens do que com as mulheres. Percebi que algumas coisas no mundo simplesmente não querem mudar. Ser bicha ainda é algo muito mais íntimo do que social. Todos os lugares aonde eu fui, as baladas todas: parece que todo mundo divide um segredo em comum. O mundo gay ainda é uma espécie de segredo socializado. Eu disse isso para um dos carinhas com quem eu fiquei. Acho que foi na segunda semana. Ele era bem mocinha e ficou bem puto comigo. Disse que pra ele não era segredo, que ele fez questão de deixar claro pra família e pros amigos como ele era. Eu não disse nada porque eu morro de medo de xilique muito mais do que de porrada. Mas o que ele não vê é que antes dele mostrar que era gay isso era um segredo. E isso não foi definido por ele, mas pelas outras pessoas. Muita gente ainda vê as bibas como guardadoras de um grande segredo. Portanto, não importa se você nunca esteve dentro do armário... alguém logo arranja um jeito de meter um armário na sua história. Na maioria das vezes as pessoas não querem ver o que está na cara, daí metem a pobre da bichinha dentro do armário pra dizer que era ela que escondia. Daí é que eu digo que ser gay é algo muito íntimo, enquanto que o armário é mais uma das infinitas crueldades do mundo. Não importa o quão veadinho você seja, para o mundo você só é quando diz que é. Quando confessa. E é por isso que mesmo a mais livre das bibas, que nunca se escondeu, já nasce condenada a arrastar o armário que inventaram pra ela.

- Pode até ser Igor, mas no seu caso é estranho, eu nunca ia imaginar, você saiu do armário sim, não vejo de outro jeito.

- Não exatamente. O que eu fiz, na verdade, foi negar o armário. Por um mês ele deixou de existir. Não havia nada fora do armário que não estivesse dentro, nem nada dentro que não estivesse fora. Só havia uma idéia: ser gay por um mês. E como eu nunca tinha sido gay nem pros outros e nem pra mim intimamente, nunca houve segredo algum. Sem segredo, sem armário. No último mês eu fui a única bicha em São Paulo sem um armário. Eu experimentei de antemão o que eu mesmo espero do futuro e o que todas as bibas sempre quiseram, entende?

- Tá. É bonito pra cacete, mas eu não me importo com nada disso. O que interessa mesmo é saber que gostou.

- (sorri saudoso) ... eu gostei mesmo é do cu se você quer mesmo saber. Eu sei que é estranho, mas eu nunca tinha comido um rabo antes. Nenhuma mulher quis me dar o toba. Eu gostei foi do cu pra valer. E agora eu só quero comer cu e isso me aflinge. Acho que não vou mais conseguir namorar como de costume porque nenhuma mulher vai querer que eu coma só por trás. Eu perdi completamente o interesse por xoxota, entrei numa fissura incontrolável por cu. Eu não sei ainda se eu me arrependo do que eu fiz. Se não fosse por esse último mês, eu tava bastante feliz com as bucetinhas todas, mas, ao mesmo tempo, foi nele que eu conheci a maravilha do calor de um rabo. Esse mês indiscriminado tirou de mim o fetiche que eu tinha com os homens e matou toda a graça que eu via nas mulheres. Meu negócio agora é o cu. Todo mundo tem um cu. Por isso ele tem algo de universal. De constante. O cu é anterior ao sexo... é a única coisa eterna do mundo.


domingo, 15 de março de 2009

a casa.

"hoje, o percurso até. antes, o caminho transposto. adiante está o futuro. um pouco mais à frente o esgotamento de todas as coisas. à esquerda a cozinha, pra quando quiser beber. no fim do corredor o banheiro pra quando quiser chorar. esta porta por onde entramos serve também de saída. e, quando voltar, a segunda porta é meu quarto, pra quando quiser se aliviar."




"hoje, o percurso até. antes, o caminho transposto. adiante está o futuro. um pouco mais à frente o esgotamento de todas as coisas. à esquerda a cozinha, pra quando quiser beber. no fim do corredor o banheiro pra quando quiser chorar. esta porta por onde entramos serve também de saída. e, quando voltar, a segunda porta é meu quarto, pra quando tiver desistido."